Nesses dias de feriado liguei para uma amiga a fim de nos
juntarmos e ir prestigiar pelo menos um dia do Carnaval de Recife Antigo, em
especial no dia dos desfiles dos blocos, que, aliás, sou apaixonada, se eu não for
me sinto infiel ao carnaval e ao povo que tem a rara oportunidade de “botar o bloco
na rua”. Contato feito, a minha amiga aceitou e fomos lá, abraçar o carnaval do
Recife e me deleitar nas poesias e
lirismo dos blocos e suas encantadoras marchinhas.Essa minha amiga é daquelas
figuras que costumamos chamar,” espírito cigano”, inclusive ela já tem uma
bolsa pronta para os convites de viagem; não há tempo ruim, não existe “deixa
para depois”, é o aqui e agora, não há planejamento na sua vida, embora seja
professora. E fomos lá: uma cerveja na mão, nada de papo de reflexão, papo de intelectual
chato, nada de “com que roupa eu vou”, nada de a moda é isso, a moda é aquilo,
o certo é isso, o certo é aquilo... Viver o momento e com alegria é o seu
forte, não há futuro, nem passado, tudo é agora e pra já; encontramos umas
colegas dela que se conheceram em uma excursão para a Argentina; uma delas
falou que a viagem sem a minha amiga seria tediosa, ao mesmo tempo que comentou
sobre sua pele, que embora este ano entre para a casa dos 60, conserva uma pele
invejável. Em outro momento encontramos outra amiga dela, ela gritou seu nome,
a colega chegou e logo partiu, percebi que a colega não queria tal companhia,
mas isso não conseguiu tirar o humor e o alto-astral da minha amiga. Brincamos,
rimos muito e lá pelas tantas da tarde encontramos de novo a amiga dela e dessa
vez sem o marido, a minha amiga tornou a chamar e eu avisei: ela não quer
conversa com você e perguntei você não percebeu? Ao que me respondeu: mas na viagem ela me
tratou tão bem, quando a colega se aproximou, imediatamente num tom leve, minha
amiga brincou: deixa de ser falsa! Nem me desse cartaz! Fosse tão atenciosa na
viagem... A colega se justificou dizendo que estava com o namorado e ele era
muito chato, minha amiga de imediato resolveu a questão: acaba esse namoro!
Rimos muito e fomos embora. Á noite fomos ver os blocos, em algum lugar uma
colega que nos acompanhava gritou horrorizada: olha! Dois rapazes se beijando! Minha
amiga prosseguiu a caminhada, nem olhou para verificar, apenas disse com toda
naturalidade que lhe é peculiar: isso é normal! Voltamos ao hotel e a outra
colega que nos acompanhava, logo que acordava tomava uns quatro comprimidos, e
era a mais nova do trio das mocinhas, eu tomava dois e a minha amiga não tomava
nada, fiquei observando e em algum momento no café perguntei: você não tem nenhum
problema de saúde? Suas taxas são normais? ao que me respondeu: normalíssima querida!
Passado a
euforia, retornamos para minha cidade e fiquei pensando na vida da minha amiga, aos 60 anos o que conseguiu adquirir foi uma
modesta casa, em um bairro simples da periferia onde mora com cinco galinhas, inclusive uma delas leva o meu nome (Cida) e
um gato, trabalha apenas um horário,
não possui cartão de crédito, não tem talão
de xeque, aliás, o dinheiro carrega em uma mochila de plástico;
sempre que conversamos sobre essas coisas ela diz sem demagogia: não vou levar
nada disso quando morrer, portanto, não quero nada. Ela é ela, literalmente ela,
mas para muitos ela é louca, inconsequente, irresponsável... Nada que se diga
ou se pense dela a incomoda, mas de tão ela, ninguém espera nada dela e espera-se
tudo que está fora do que consideramos correto. E fiquei pensando o quanto nós somos
responsáveis pela imagem que criaram da
gente, e o quanto alimentamos essa imagem, às vezes nem queremos mais aquela
imagem, mas alimentamos nos outros essa imagem e geramos tantas expectativas
que não temos coragem de agora
desconstruí-la, pois por qualquer leve mudança, logo somos indagados: logo você
com essa atitude! O que está acontecendo com você? Está tão diferente! Esperava
isso de qualquer um, menos vindo de você! E por aí vai, um calvário que nós mesmos ajudamos construir
para sermos aplaudidos; na vida há ônus e bônus para todas as nossas escolhas, minha
amiga tem o ônus de não ter uma casa boa, bairro nobre, de não ter um carro, de não ser convidada para eventos,
restaurantes, festas, passeios, férias... Mas tem o bônus de dormir a noite
toda e não sentir sequer uma dor de cabeça, porque vive livre dos
determinismos, porque não precisa pedir permissão para viver, porque não teme
os maléficos julgamentos que paralisa os normais, os que alimentaram as
expectativas e respondem aos modelos de comportamento ditos corretos. Aos
normais, o ônus de algumas noites de
insônia, antes de tomar uma atitude olha pra frente, pra trás e para os lados e
ainda pergunta: posso? Um eterno e constante estado de alerta e tensão e na
bagagem alguns choros reprimidos, alguns gritos calados, alguns passos
atrofiados... e ao amanhecer alguns comprimidos ingeridos.E é mais um carnaval que passou, não sou aquele pierrô,
mas sou aquela mulher que leva na mala da alma o eterno desejo de mudar sempre
e ser feliz.
Cida
Fantástico texto. Ri ao saber que sua amiga (de quem eu já sou fã) tem uma galinha que leva o seu nome. Obrigada por escrever e partilhar o texto.
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